sexta-feira, 15 de julho de 2016

Entre Deus e o diabo


A contemporaneidade apresenta alguns desafios ao processo de humanização.

As Igrejas veem-se provocadas a responder às crises do mundo atual.

Por Tânia da Silva Mayer*

Nenhuma pessoa nasce pronta para a vida. Diferentemente dos animais, nós precisamos ser ajudados a superar a estranheza do mundo, de modo especial nos primeiros anos de vida. Os outros nos auxiliam nesse processo de descobrimento e apreensão do mundo, e também na construção de sentido. Dessa maneira é que aprendemos a respeito da vida, do lugar que ocupamos nas relações que construímos e do mundo que nos circunda e engloba. Por tratar-se de um longo processo, que pode durar toda a vida, é que afirma-se que cada pessoa não nasce pronta e que ela vai se tornando pessoa no decorrer do tempo. Isso significa que, progressivamente, ela se torna mais humana, alguém mais humanizado.
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No entanto, a contemporaneidade apresenta alguns desafios ao processo de humanização, pessoal e coletivo – compreendendo que ambos estão interlaçados proficuamente. Há uma crescente desvalorização das relações interpessoais, e o desejo de estar com os outros em teias relacionais perde força diante do crescente individualismo. O acento agudo na imagem do “eu” promove verdadeira egolatria; e o desejo de construir uma vida e uma história coletivas é minado pelo culto a si mesmo. Nesse movimento, o outro é reduzido a objeto de satisfação dos “meus” desejos pessoais. Agora vale aquilo que “me” dá prazer, aquilo que “me” satisfaz, de modo que, na egolatria, o outro deve “me” proporcionar o “gozo da vida”.

Por outro lado, o corpo humano segue um padrão ditado pela mídia. Há uma espécie de corpo idealizado, que valoriza a forma física, a saúde e um tipo de “beleza” pré-estabelecido. Com isso, avançam as pesquisas nas áreas biológicas, com o intuito de prolongar a vida, a fim de que seja eterna e feliz. Aliada a essas pesquisas estão a tecnociência e a informática, oferecendo, a cada dia, novas possibilidades de cumprir tal objetivo.

O que aqui se verifica nas relações interpessoais é, igualmente, percebido nas relações com o transcendente, o sagrado, Deus. Embora a procura por experiências religiosas seja uma crescente, o que percebemos é a desvinculação dessas experiências com os aspectos institucionais das religiões. Concomitante a esse evento está outro acontecimento relevante, o fato de que a procura pelo transcendente, pelo sagrado, por Deus, está em vistas das “minhas” satisfações pessoais, do bom proveito que “eu” terei da vida. A egolatria, num sentido cristão, concorre à perigosa idolatria, que é a negação radical de Deus que se revela expondo-se à relacionalidade humana, na encarnação de Jesus Cristo. É o tempo de diversidades, da pluralidade de religiões, de culturas, de crenças, etc., e a teologia é convidada a compreender e dar razões da fé no turbilhão das experiências que vão surgindo.

As Igrejas veem-se provocadas a responder às crises do mundo atual. Crises essas que estão, profundamente, enraizadas nas sociedades e, também, nas estruturas das religiões. Elas perdem muito da credibilidade institucional que adquiriram diante das pessoas. Não obstante, uma onda reacionária se levanta no interior do cristianismo propondo um “moralismo” na vida cristã. Posições fundamentalistas e legalistas no campo da moral povoam o imaginário dos cristãos. E a palavra do Evangelho é subterfugiada por concepções diabólicas da existência. Nos aspectos morais da vida, sobretudo na tangente sexual, a dicotomia do pode ou não pode, do certo ou errado, demoniza as relações entre as pessoas, porque se abstraem, muitas vezes, da realidade, ao restringirem-se aos aspectos imaginários, fantasiosos e, nesse sentido, falsos adquiridos de seus fundamentalismos.

É, sem dúvidas, necessário passar desse imaginário diabólico e falso para a realidade possibilitando uma hermenêutica da finalidade da ação, o objetivo da ação dos sujeitos éticos. Por isso, para dar o salto dos preconceitos morais que habitam o imaginário das pessoas às relações humanizadas e humanizadoras, nós precisamos do simbólico, dos símbolos que nos ajudem a aproximar o sujeito de suas ações, a fim de que a egolatria seja superada em vistas de uma relacionalidade fraterna. Para cumprir esse objetivo, que é passar da diabolização moral para as relações éticas, é que a linguagem e a palavra (de Deus) devem ser invocadas rememorando aos sujeitos crentes[1] que seu agir está radicado nas obras e palavras de Jesus e, portanto, nas relações humanizadas e humanizadoras.

Desse modo, entre Deus e o diabo é preciso reconstruir a significação da ética. A ação ética é aquela em que ao agir, me faço com outros no mundo, construindo relações sociais mais justas e fraternas. Nesse sentido, a ética preocupa-se com a humanização da humanidade, a autorrealização dos sujeitos enquanto agem, com e para os outros no mundo. Por isso, os sujeitos éticos desejam ser aquilo que são; e ao agir compreendem a si mesmos e aos outros, decidindo pela humanização das relações. Mas, para que isso seja levado a termo, é urgente uma pastoral narrativa, ou seja, uma pastoral capaz de recuperar a narratividade evangélica e, com ela, a significação da fé cristã. Desse modo, compreende-se que os crentes são abstraídos por um imaginário moral diabólico, justamente por não ouvirem mais as narrativas da fé com o anúncio primigênio da práxis libertadora de Jesus e da Boa-Nova do Reino, não percebendo, assim, que toda ação cristã é ética quando está preocupada com a realização dos sujeitos, no horizonte de sentido que é Jesus Cristo, fonte e origem da humanização anti-diabólica.

[1] Diz-se de quem crê e não com respeito a indivíduos de determinadas religiões cristãs.

*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG.

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